Quatro partes de anatomia

/ Parte Primeira: do passado /

Era tarde...

e como em tantas outras noites
tinha gasto todos os pretextos 
para me manter acordada

Foi de repente que 

deitada na cama 
senti que te encaixavas 
atrás de mim

Aquela memória reproduziu a tua anatomia
com uma tal precisão
que desenhou o ângulo da tua pélvis 
nas costas do meu corpo

Apesar de tudo mais que sobrava 
o vazio tinha agora a forma da tua ausência
a temperatura do teu corpo

/ Parte Segunda: a era da sombra /


Aquele outro ser de sombra 

que veio depois 
demorou-se demais 
Por incúria ou excesso de delicadeza
permiti que tentásse ocupar-te o lugar
Foi um erro terrível

Paguei-o caro

À troca da coragem de acreditar 
que podias voltar e existir 
num outro tempo 
repetido num outro corpo

Pior que tudo 

vivia agora a vida incrédula
desligada de qualquer apego à poesia
Aquela que se inaugurou 
em bicos de pés quando chegaste 
e se escreveu em contínuo quando saíste
Como uma herança imaterial 
impossível de alienar
Um som de fundo
Perpétuo

Duvidei de tudo 
Perdida no meio de uma poesia 
que me parecia inventada 
quando no fim recordava a nossa
parecia morta  
e eu tanto quanto ela

/ Parte Terceira: o antes e o agora /


Tu nunca te dedicaste à poesia

nunca foste sequer de te interessar muito por ela
Mas naquele momento
com a memória da tua anatomia 
encostada atrás da minha
trouxeste-me a retrospectiva 
de toda a poesia que juntos fizemos

Foi a consumação do vazio e do irrepetível

Foi assumi-lo como lugar teu
Podia enfim adormecer
aninhada na memória daquele molde


/ Parte Penúltima: de esperança e memória /


Voltaram então a sobressair 

sob o manto herético  
na forma de esperança...

Era outra vez acreditar que poderia voltar 
E porque não existir num outro tempo 
refeito com outros corpos

Começavam a vir-me à memória 
outros versos entretanto iniciados 
que decidira esquecer
Lembrava agora a métrica 
da poesia outrora...

tinham sido escritos nas ocasiões raras 
em que se esboçavam variações anatómicas 
imprecisas e pouco nítidas
de um molde sagrado 
mesmo que por medo e descrédito
quem sabe respeito 
os novos corpos
não tenham sido capazes 
de o voltar a desenhar e preencher 

Ainda que incompletos
mesmo que enlutados
esses outros versos
estavam mais perto da verdade
do que toda a poesia 
escrita e ouvida na era da sombra

Com alívio relembrei 

Que a poesia não morre 
Que quando é orgânica não mente 
Que é uma armadura de coragem 
E que nos permite seguir vivos
Mais perto que longe 
de reinventar a anatomia-perfeita

Mesmo que esta só exista 
quando dela se faz 
delírio ou memória

@JC | Out | 2018

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