Conto primeiro | Prólogo

Conto primeiro

Ou

Trazes-me insistente à omnipresença obsessiva do amor

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| Prólogo |

E chegou agora a tua mensagem e o telemóvel vibrou porque me esqueci de garantir o habitual silêncio... achei q era o B. (tu não sabias quem era ou sequer que exista... mas agora que leste o que pode ser um outro nome, sei que já sabes, mesmo que ele ainda quase não exista ou que não venha sequer a existir)... mas não era, não era um outro, o B. para o caso (se é que importa)... como não era ontem à noite quando as tuas palavras, e o "unnamableLiar" que legenda o perfil do teu rosto, iluminaram o meu écran à noite, já tarde, no sofá.

E é assim que te intrometes... como sempre, mais ESTA vez... ia dizer "UMA vez" (mais uma vez)... mas não disse... como não disse ontem "cedência" em vez de "concessão"... porque é verdade, antes de tudo, como ontem disseste, "somos as palavras"... pelo menos nós somos, porque eu o sou sempre (e talvez tu também, sozinho ou quando somos "nós")... porque elas escolhem-me sempre primeiro e aparecem já escolhidas, para depois se revelarem mais do que são...

Mas não me posso esquecer que decidi começar o meu, ou nosso livro, com o sonho de hoje e o que ele trouxe... por sentir que é um bom começo para qualquer livro e para este em particular... É um bom começo porque em verdade pode ser enfim o final da nossa história... e há tantas boas histórias que começam pelo fim.

Falámos ontem duas horas ao telefone... quando nada o fazia prever... ou pelo menos tentei eu tratar de que assim fosse. Falámos duas horas ao telefone e eu vim dormir e entretanto escrevi um livro... Quando acordei tinha um livro escrito na minha cabeça, que já habitava inteiro dentro de mim e que assim de repente apareceu e se escreveu sozinho... Dás-me isto... esta possibilidade de acreditar ser escritora ou poeta... se ao menos fosse verdade que podia atrever-me a ser isso e cessar de ter que ser todas as outras coisas... porque sou tantas ao mesmo tempo... elas puxam-me para vários e diferentes lugares e eu ando sempre perdida entre todos eles... em nenhum e em todos ao mesmo tempo... por isso ando sempre tão cansada.

Comecei, muito lá atrás (nem sabia o que fazia e muito menos dar-lhe uso), por escrever pequenas prosas, por não saber como, nem gozar do atrevimento, para ser poética... Isto antes de Cristo... ou antes de ti, que como ele és Emanuel... em boa verdade antes do N.... mas, também em verdade, foi a ti que te escrevi mais poemas do que a qualquer outra pessoa e, bolas, são esses também os melhores... portanto foi contigo que a poesia se profissionalizou nos ofícios do meu silêncio... Foi só depois que me fui atrevendo aos poemas... De repente ficava tudo tão mais vivo, tão pungente e intenso, tão texturizado... Era fantasia e ao mesmo tempo era mais real... mais redondo e macio e também mais contundente e mais áspero... mais carregado de tantas outras ambivalências, ângulos e arestas... E era a métrica... a métrica dos (meus e dos nossos) poemas era tão obscenamente estética e enchia-me, não só mas também, de orgulho... ah... e de alívio.

Hoje escrevi um conto... começou sozinho e já se escreveu antes de estar escrito. Um conto que é um poema... pode não parecer na forma, mas é-o na geometria e na melodia... Já deixei de achar que a poesia só cabe em versos... e isto deste-te tu... esta liberdade (uma no meio de tantas escravidões, redundâncias e ciclo viciados) de escrever versos esconsos, nesta gramática rebelde... deste-me tu, o Herberto e o Valter... E o atrevimento ou coragem de ser, às vezes, mais retrógrada do que o meu feminismo me permite, esse deu-me a Maria do Rosário... Mas aqui não colaboraste. "Isto" foi só ela quem me deu e eu que o permiti... quando muito, "isto" foste tu que me tiraste.

Eu sei, ficaste preso no B.... ferido de morte como com a gargalhada de ontem... como com o D, o M e o N... mas, pensa comigo: isso é só um pretexto... mais um que te dei... porque será como sempre foi... fugirás, fugirias... se eu te desse ou tirasse esse espaço, fugirias como sempre... tens pelo menos este pretexto... dou-to. e à nossa poesia.

Maria Barreto Cabral (é a primeira vez que uso um "pseudónimo" e sei que também isto quer dizer mais do que parece)


Em baixo: despojos de leite com chocolate... ou, se assim se insistir em ver, um coração e a omnipresença obsessiva do amor...

12 Jan 19 | 9h30 | pequeno almoço



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